quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Tragédia de Macbeth: Luzes e sombras em contrastes que desenham consciências

fevereiro 23, 2022 | por Anônimo

Cenários geométricos estrategicamente iluminados

Respeitosamente fiel à obra de um dos pais do teatro, Shakespeare, a cinematografia de “A Tragédia de Macbeth”, de Joel Coen, 2021, é notável essencialmente por usar os recursos do teatro, num audacioso preto e branco, com cenários que, ao mesmo tempo que imponentes, enormes e profundos, são minimalistas no que tange a detalhes, como um palco. Além disso, através de perceptíveis influências do Expressionismo alemão e algumas pitadas do grande mestre um dos primeiros a filmar a tragédia, Orson Welles, em “Macbeth – Reinado de Sangue”, 1948 - como a grandiosidade dos cenários, os contrastes em p&b, a dramaticidade dos atores -, Coen traz uma versão única e imponente do texto do poeta britânico.


Kathryn Hunter (as 3 bruxas) e os diretores Joel Coen e Bruno Delbonnel, nos bastidores de “A Tragédia de Macbeth”

É expressiva e determinante a direção de fotografia de Bruno Delbonnel, o veterano com cinco indicações ao prêmio da Academia e parceiro do diretor em “Paris, Je T'aime” 2006, “Inside Llewyn Davis”, 2013, e “A Balada de Buster Scruggs”, 2018, além de outras admiráveis obras de destaque admiráveis como “Across the Universe, 2007, “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001 e tantas outras preciosidades( veja filmografia completa em adorocinema.com). Delbonnel, em perfeita sintonia com os objetivos de Coen, atua de maneira a destacar a contradição da gananciosa consciência humana conduzida por ideias externas às quais se deixa levar e seduzir. Com o intenso antagonismo do preto e branco, em matizes contrastantes e em paisagens geométricas profundas, imensas e vazias, a fotografia é recurso fundamental em evidenciar o profundo atrito moral interior dos personagens principais e, ao mesmo tempo, a pseudo grandeza de um reino (tudo tão vazio).

Profundos, vazios, ressonantes

Em cenas que destacam os personagens e suas falas com closes perturbadores, que levam o espectador a perceber seus profundos e antagônicos sentimentos, Delbonnel utiliza-se, ainda, de preciosas técnicas de iluminação que geram sombras em cenários espartanos para desenhar, dramática e cruamente, a angústia de consciências humanas em momentos de grandes decisões. O resultado é que ficamos meio hipnotizados diante de tamanhos contrastes, imensidões e close-ups com palavras tão intensas. Há que se parar em certos trechos, revê-los e apreciar a plasticidade da cena.

Denzel Washington como Macbeth

Outro recurso utilizado e que dirige o olhar do espectador, fechando-o ainda mais na cena, é o formato 4:3 de tela, mais quadrado — diferente do usual widescreen, em 16:9, horizontal. “Queríamos focar no ritmo da linguagem de Shakespeare e no poder das falas, e não há nada melhor para close-ups e estabelecer a presença do ator na tela do que o quadro da Academia. Se você pensar na mesma cena em anamórfico, você tem muito ar dos dois lados, o que para nós seria contraproducente” explicou Delbonnel em entrevista ao site IndieWire.

Frances McDormand como Lady Macbeth

Além de Welles e Coen, outros grandes mestres também se encantaram com a tragédia e a realizaram como Akira Kurosawa em “Trono Manchado de Sangue” (no Japão, “O Castelo Teia de Aranhas”), 1957, que ousadamente adaptou uma obra ocidental para um cenário e tradições orientais e Roman Polanski, (entre outros tantos, pois este texto originou mais de 25 filmes) em “Macbeth”, 1971, que se destaca pela crueza e violência da narrativa. Ambos também sensacionais e imperdíveis.

Mesmo focando em cinematografia, lembrando que uma equipe cinematográfica vai além da diretoria, não podemos deixar de destacar o brilho de toda a equipe do projeto. E às brilhantes e intensas atuações dos ícones da dramaturgia cinematográfica, Denzel Washington (como se o papel tivesse sido feito pra ele, há 400 anos atrás) e Frances Louise McDormand (esposa e parceira de Coen em várias obras), na sutileza crua da determinação de Lady Macbeth. Percebe-se todos tão profundamente envolvidos no objetivo, todos no mesmo ritmo, na mesma sintonia, fatores que tornam possíveis e perceptíveis a poderosa harmonia e o equilíbrio no resultado final desta obra de arte, mesmo que ela narre sobre desequilíbrios e desarmonias.

Cena de Macbeth

Como ressalta Delbonnel: “Este filme é sobre ritmo. É sobre a luz ser um ritmo dentro do ritmo da linguagem, e o ritmo da forma, como os atores caminham pelo set, e há o ritmo do design, do som e da música. É um ritmo dentro de um ritmo dentro de um ritmo.”

Delbonnel no ritmo de Macbeth

O bardo inglês, com certeza, se comoveria com esse ritmo e aplaudiria de pé. Vale ver, sentir e refletir. Mais de uma vez.

 

 "O sino me convida.
Não ouça, Duncan; pois é um toque
que te chama para o céu ou para o inferno

- William Shakespeare, Macbeth , 2.1