quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A fotógrafa que deixou o mundo da moda para mostrar a face feminina da luta contra o Estado Islâmico

dezembro 21, 2016 | por Resumo Fotográfico

Em artigo para a BBC Brasil, Luciana Barros conta a história da fotógrafa Jana Andert, que está há quase seis meses acompanhando os combates contra o Estado Islâmico na região de Mossul, no Iraque.
Gabriel Chaim  
Jana Andert está há quase seis meses acompanhando os combates contra o Estado Islâmico na região de Mossul

Do glamour dos estúdios de fotografia do mundo da moda e da publicidade para frente de batalha na guerra contra o grupo autodenominado "Estado Islâmico", no Iraque. A fotógrafa tcheca Jana Andert está há quase seis meses acompanhando a ofensiva para retomar Mossul, a segunda maior cidade iraquiana, desde 2014 sob controle do EI.

"As vezes tenho medo, claro. É natural ter medo quando você sabe que pode ser morta a qualquer momento", admite.

A ofensiva foi intensificada em meados de outubro. O avanço foi rápido nas primeiras duas semanas, mas desde o começo de novembro encontra forte resistência por parte dos 3 mil a 5 mil combatentes do EI.

Forças de segurança do Iraque, apoiadas por combatentes iraquianos de origem curda (os peshmerga), grupos tribais sunitas e milícias xiitas - com cobertura e assessoria militar de uma coalizão liderada pelos Estados Unidos - participam dessa operação.

"Mas o medo também me mantém concentrada e alerta", continua a fotógrafa, de 33 anos, que há pouco mais de um ano esteve pela primeira vez no norte do Iraque para registrar a situação dos refugiados sírios.

Refugiados

Dali para o front, como profissional independente, foi um pulo.

"Foi a minha primeira vez numa zona de conflito. Vi como a vida é difícil na guerra e que existem muitas histórias a serem contadas e registradas."

Jana vive na Holanda há 13 anos - em Dordrecht, cidade de pouco mais de 118 mil habitantes no sul do país.

Andert largou a carreira de sucesso como fotógrafa de moda para registrar os refugiados sírios e da guerra no Iraque

Ela estudou fotografia e depois psicologia, "o que ajuda muito quando você trabalha numa zona de conflito", admite.

A mãe, assistente social, e o irmão, gerente de vendas, continuam na República Tcheca. O pai, engenheiro, morreu de câncer, em 2009.

Durante quatro anos Jana trabalhou como fotógrafa de moda e publicidade, com vários estilistas e empresas, mas abriu mão do conforto dos estúdios.


A tcheca conta que a vida front não tem sido fácil, mas já melhorou bastante, especialmente em relação à convivência com os soldados.


"Este é um mundo de homens. Eles (os soldados) não estão acostumados com a presença de uma mulher no front", observa, lembrando que rotinas simples, como ir ao banheiro, tomar banho e dormir, transformam-se em uma espécie de transtorno em um ambiente onde quase não há outras mulheres.

Outro desafio foi conquistar o respeito dos militares e fazer com que eles a vejam como uma profissional "e não apenas como mulher".

Guerra feminina

E foi convivendo com os militares curdos que ela descobriu a face feminina da guerra contra o EI.


"Passei quase cinco meses no front dos peshmerga ao sul de Mossul. Ali ouvi falar sobre as jovens iranianas que lutam pelo Partido Azadi do Curdistão" (PAK, na sigla em inglês), lembra.

Também chamado de Partido da Liberdade do Curdistão, o PAK é um partido político que luta pela unificação do Curdistão - uma região autônoma do Iraque e que fraz fronteira com Irã, Turquia e Síria - e tem unidades armadas de combatentes no Irã e no Iraque.

Peshmerga é uma palavra curda que significa "aquele que enfrenta a morte", e essas unidades são conhecidas como "Falcões da Liberdade do Curdistão". Elas lutam ao lado das forças regulares curdas.

Muitas unidades receberam treinamento militar dos EUA e foram decisivas, por exemplo, na retomada da cidade de Kirkuk, em outubro.


As meninas de Bashiqa

Os curdos são a mais numerosa nação sem Estado do mundo: calcula-se que sejam 26 milhões de pessoas, a maioria muçulmanos sunitas, organizados em clãs e que falam a língua curda.

Jana conseguiu autorização do comandante do PAK para se aproximar das jovens e registrar o dia a dia delas.

"São cerca de 50 garotas peshmerga, e a maioria tem no máximo 20 anos. Parte delas fica em Kirkuk e parte nas montanhas de Bashiqa (cidade que foi tomada do EI há cerca de três semanas)".

As garotas guerrilheiras de Bashiqa vivem em duas casas abandonadas pela população.

"A casa delas é, na verdade, a frente de batalha. Elas são muito unidas e cuidam umas das outras."


Atualmente, elas protegem e patrulham a cidade, enquanto esperam para lutar em Hawija, cidade vizinha a Kirkuk, explica a fotógrafa.

Na ofensiva em Bashiqa, segundo Jana, uma guerrilheira foi morta e duas ficaram feridas por morteiros do EI.

"As garotas me disseram que os combatentes do EI mandavam drones para localizá-las e depois disparavam muitos morteiros contra as posições delas."

Se, por um lado, elas são vistas como iguais pelos soldados curdos e peshmergas, as garotas despertam pavor entre os combatentes do EI.



A explicação para esse medo circula no front como uma espécie de lenda: militantes do EI acreditam que, se forem mortos por uma mulher, não irão para o paraíso, ao encontro de dezenas de virgens - algo que muçulmanos radicais acreditam ser a recompensa para quem morre em "guerras santas". Mas, sim, serão amaldiçoados e acabarão no inferno.
Uniformes, fuzis, tênis e maquiagem

O grupo de guerrilheiras em Kirkuk vive na mesma base que os homens. Mas ocupa alojamentos separados e tem seus próprios comandantes.

"Elas estão aqui para lutar. Quando pergunto se querem casar e ter filhos, dizem que isso não é importante. Talvez depois que tudo termine..."

Algumas guerrilheiras falam um pouco de inglês e Jana também já aprendeu um pouco de curdo.

As guerrilheiras se transformam em "Falcões da Liberdade" com uniformes militares camuflados e fuzis russos AK-47.


Mas nessa guerra não há coturnos protegendo seus pés, mas tênis comuns.

As sobrancelhas são desenhadas e os cabelos, geralmente compridos, enfeitados por presilhas, fivelas e pentes coloridos. E arrumados com cuidado.

"Elas gostam de estar bonitas no dia a dia", diz Jana, destacando que algumas usam um pouco de maquiagem.

"Preocupam-se em ser femininas, mas ser uma combatente é mais importante, é tudo."

Mani, Haja e Koderstan: três jovens guerreiras

Jana fala sobre algumas das guerrilheiras que filmou em Bashiqa. Uma delas é a iraniana Mani, de 22 anos, uma das mais velhas combatentes no front, e que se juntou aos "Falcões da Liberdade" há cerca de um ano.


"O pai dizia que ela não era forte e corajosa o bastante para se juntar ao PAK, mas ele estava muito doente e morreu. Depois disso, Mani saiu de casa e veio para o Curdistão se juntar aos combatentes do PAK. Veio pelo pai, para deixá-lo orgulhoso", conta a fotógrafa.

A peshmerga Haja, que tem 18 anos e há 11 meses chegou ao front, evita assuntos pessoais, segundo Jana.

"Ela não fala sobre como era a vida antes de vir para cá. Tem um diário e escreve tudo o que faz, como se sente e o que aconteceu de mais importante."

A jovem disse que está escrevendo para a mãe.

"Ela quer que a mãe saiba o que está acontecendo e se orgulhe, se ela morrer em combate."

Nas cenas que a fotógrafa filmou, Haja desmonta e limpa minuciosamente um fuzil AK-47.


E ela afirmou a Jana: "A guerra não é só combate. Vivemos na guerra. Temos que viver o nosso dia a dia, nos divertir e gostar de estar juntas".

Comandante aos 18 anos

A ligação com a família também é forte para Kordestan, de 18 anos. Ela sonhava em ser uma comandante, quando se juntou ao PAK, há quase um ano.

"Ela adora lutar e é muito corajosa. Dois meses depois de entrar para o PAK, virou comandante e é agora responsável por seis garotas", observa.

Kordestan fala inglês e estuda a língua porque futuramente quer trabalhar como tradutora para o partido, disse à fotógrafa.

Nas cenas filmadas por Jana, ela contou em inglês como convenceu os pais a deixá-la ir para a guerra.

"Meus pais me perguntaram por que eu queria lutar no norte do Iraque. Eu disse: não temos nada, não temos liberdade, não temos direitos. Quero lutar pela nossa liberdade, por uma vida melhor para todo o povo do Curdistão. Se ninguém for lutar, nada vai mudar."

O orgulho de ser peshmerga é grande, diz a fotógrafa.

"Elas me disseram que não têm medo do EI e que se não lutarem pelos seus direitos e pela liberdade, vão morrer e viver por nada."

A foto favorita de Jana Andert é um flagrante noturno da aldeia de Sultan Abdullah, que é controlada pelo EI.


"Gosto dessa foto porque ela mostra a beleza da paisagem em meio ao drama da guerra."

BBC Brasil