sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Fotografia, eros e thanatos em (des) limites sensuais entre paixão e desejo

janeiro 22, 2021 | por Adriana Vianna

Uma reflexão sobre o nu artístico, o erotismo e a pornografia


“Nua feminina reclinada, Amélie”, Félix-Jacques Moulin (1802 -1875) | Wikimedia Commons

Tradicionalmente, o pensamento sobre o corpo na nudez artística passa pelo conceito de apelo sexual. Desde a Grécia Antiga, a filosofia dividiu-se entre punir o corpo e os prazeres dos sentidos com o ideal ascético enquanto os hedonistas eram, na melhor hipótese, os imorais. A questão é que o limite entre as manifestações artísticas que envolvem os fenômenos do instinto e os fenômenos emocionais do corpo, foram e ainda são, por muitos, tratados como negativos, ruins e de mau gosto. O sex appeal que faz parte da vida, na fauna e na flora, é inato à existência, apreciado ou não, explorado ou não, ele existe - independente de registros fotográficos ou plásticos. A ênfase e a interpretação que se dá, a cada práxis, pode ser determinante para contornar o artístico - entre o erótico e o antropológico, entre o erótico e o pornográfico, entre a fantasia e a vida.


“Untitled (Hotel Rooms)”, 1993-1994. Nobuyoshi Araki, 1940 | Acervo Sotheby's

Não faz muito tempo houve um leilão na Sotheby's com o tema “Erotic: Passion & Desire que tratou de reunir imagens de obras plásticas e fotográficas de nus em diversas tensões e variações a fim de provocar o que está entre o erótico e o pornográfico. A interpretação do leilão destacou a nudez nas diversas artes para conexões sensuais da paixão, do amor e do sexo, explorando desde a beleza do desejo às representações do nu - até o próprio ato carnal de consumação sexual, despojado de metáforas, enigmas, sutilezas, sugestões. Apresentando mais de cem obras em suportes variados, o leilão arrecadou £ 5.292.625, ultrapassando os valores estimados. 

  
“1929", Man Ray, 1890-1976 | Acervo Sotheby's



“Exposition Coloniale Internationale” 1931. Man Ray, 1890-1976 | Acervo Sotheby's


A mobilidade modernista era o contexto de Man Ray. Seus amigos Marcel Duchamp (ready-made) e Francis Picabia perceberam o simbolismo sexual das máquinas: Picabia achava erótico até os carburadores. Mas a imagem surpreendente de Man Ray atribui significado sexual a um secador de cabelo elétrico. Imediatamente, isso sugere “L'Origine du monde” de Courbet, o mais famoso “click” de virilha da história da arte, bem como o estado de espírito “alucinante” (perturbado) cultivado pelos surrealistas. Na verdade, Man Ray enviou suas fotos para Andre Breton, o fundador do Surrealismo, cuja crença era “a beleza deve ser convulsiva” - como de fato aconteceria com uma rajada de ar quente entrando na vagina. Esta fotografia poderosa e transgressora obscureceu as fronteiras da pornografia e do erotismo tanto quanto, ou mais, que a pintura de Courbet. 


“L'Origine du monde”, óleo sobre tela, 1866. Gustave Courbet, 1819-1877. Acervo Museu d'Orsay

Voluntariamente provocadora, esta obra distorce as regras vigentes até então. Regras que reservavam — ou pelo menos toleravam — nus inscritos nos contextos das grandes cenas mitológicas ou oníricas, sem se confrontarem diretamente ao real em sua crueza mais extrema. 

Costuma-se dizer que a diferença entre pornografia e erotismo é simplesmente uma questão de iluminação e que também há uma diferença de intenção. Uma envolveria coerção e desgraça, o outro, beleza e deleite. Etimologicamente, a palavra pornografia vem do grego porné, derivado do grego peenemi, que significa “vender”. Originalmente, referencia-se àqueles que vendiam seus corpos para prostituição de um modo pouco normal e pouco apropriado, em situações explícitas e até violentas. Mas esses conceitos de “prostituição”, “vender o corpo”, também foram muito ampliados no século 21 e os limites entre os conceitos, que já desde sempre estiveram em linha tênue, se esbarram em muitas obras, sem amalgamar Eros e Thanatos.

“Untitled (La Croix Gamahuchée)”, 1946. Hans Bellmer, 1902-1975 | Acervo Sotheby's

Lisa Lyon, 1982. Robert Mapplethorpe, 1946 -1989 | Acervo Sotheby's

A arte erótica sendo um campo muito subjetivo, sempre foi muito difícil diferenciá-la da pornografia. Ao tentar diferenciar os dois, a primeira coisa a considerar, talvez, seja o contexto. Se alguma fotografia erótica de hoje fosse mostrada durante o renascimento, muitas pessoas ficariam indignadas. Mas hoje temos uma abordagem totalmente diferente e mais moderna do que é considerado sexualmente explícito. Com essa ideia de contexto, é importante apreciar cada obra erótica do mesmo jeito que se aprecia qualquer outra arte e questionar o significado de cada obra. Dizem que arte erótica foca na sugestão para transmitir um significado, incentivando o espectador a inventar o resto da história. Se você vai concluir que o único interesse da obra é proporcionar prazer ao espectador, certamente pode ser considerada pornográfica. Talvez o erótico ainda esteja em uma esfera de apelo que convida à observação, como um convite sem promessa de encontro, deixando a ênfase recair sobre a plástica do corpo destacado pela iluminação, e dissociado de intenção. O apelo do pornográfico parece suscitar uma satisfação imediata, para resolver um problema do desejo. O apelo erótico não parece querer resolver objetivamente nada, mas problematizar o desejo, tornando-o ou revelando-o existente e latente.


Kiki de Montparnasse, Julian Mandel (1872-1935) | Wikimedia Commons

Mas o limite ainda pode ser muito ambíguo, sem contexto. Por exemplo: a obra mural fálica de Keith Haring poderia, à primeira vista, ser considerada pornográfica, mas, na verdade, a pintura é uma das muitas obras criadas pelo artista, que luta para avançar nas pesquisas sobre a AIDS. Se levarmos em conta que o próprio artista morreu de AIDS, o mural fica ainda mais poderoso. A obra fica ainda mais forte quando se entende que Haring queria derrubar a falocracia instituída pelo falo como poder de governo para ser um simples órgão do corpo que está destinado a proporcionar prazer. Toda a obra desse artista é muito sugestiva, mas o público precisará de mais do que um simples olhar para decifrar todo o seu significado. Isso nunca é uma verdade para a pornografia, onde não há espaço para qualquer debate. Em termos simples, para determinar se uma obra é de fato pornográfica, você deve primeiro considerar essa obra como uma obra de arte, se for possível, pois a arte afirmou-se como cultural. 


“Nu Couché”, Amadeo Modigliani, 1917

A obra “Nu Couché” de 1917, óleo sobre tela, do pintor italiano Amadeo Modigliani, representa uma mulher nua totalmente exposta. Esse trabalho tem sido objeto de muita controvérsia desde o início do Século 20 e a peça foi descartada pelo público. Mas, depois de quebrar o recorde do leilão da Christie's em 2015, vendida por 170.405.000 dólares para o empresário chinês Liu Yiqian, a obra foi destaque em jornais de todo o mundo. Contudo, o trabalho, mesmo assim, foi censurado. 

Considerando a cultura atual e a atitude em relação à sexualidade, pode-se realmente perguntar por que essa obra foi censurada novamente.