quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Bellocq e a estética do nu sem glamour

janeiro 07, 2021 | por Adriana Vianna


Na história da arte e da fotografia, o nu das mulheres sempre foi revelado pelo olhar masculino. Recentemente, as mulheres fotógrafas passaram a fotografar a si mesmas colocando o autorretrato feminino na mira das produções autorais e passaram a fotografar outras mulheres por perspectivas históricas ainda por vir. Mas, antes de trazer outras ideias para esse debate que deixaremos para a próxima semana, hoje faremos uma retrospectiva do enigmático E. J. Bellocq (1873-1949) - um dândi da fotografia artística de nus e que entre outras exposições em museus e galerias, recentemente teve uma exposição individual na galeria Deborah Bell Photographs.



Bellocq é um mistério, pouco se sabe sobre sua vida ou sobre suas intenções artísticas. Há muitas lendas que contornam sua história e apesar de ter sido um fotógrafo comercial, suas fotografias de Storylville realizadas no lendário distrito vermelho de Nova Orleans, só se tornaram conhecidas 19 anos depois de sua morte. A série de 1912 que esteve escondida é seu trabalho principal e talvez o único trabalho que tenha sobrevivido. Sua marca, deixada em 89 negativos de placa de vidro, foi encontrada depois que ele morreu. Em 1966, as placas chegaram nas mãos de Lee Friedlander que as imprimiu meticulosamente em POP (papel para impressão) na virada do século. Em 1970, ele levou uma exposição ao Museu de Arte Moderna de Nova York. Em 1997, Nan Goldin escreveu o artigo "Bellocq Époque" questionando os mitos do MoMA. No início de 2020 Deborah Bell Photography inaugurou uma exposição onde 36 retratos ficaram em exposição durante o ano inteiro.



Mulher vestida, mulher nua. Ambas descontraídas.

As imagens das mulheres aparentemente não tem nada de perverso. As imagens, em maioria, são brilhantes e nítidas, numa atmosfera leve e descontraída onde as personagens posam tão naturalmente quanto naturalmente devia ser antes de colocarem tanta perversidade cultural no seio da arte e na conta da mulher. A questão é que a linha que separa o olhar para a nudez oscila entre a visão dos que buscam as mulheres como seus objetos de desejos e estímulos e os que apreciam por apreciação, arte pela arte, tal como uma vocação voyeur, quer seja do corpo ou da arte fotográfica.

Mulher com a face apagada com emulsão 

Mulher com máscara de carnaval.

Na obra de Bellocq o que se vê são mulheres ora se divertindo em cenas obscenas ora introspectivas em seus quartos, mas os corpus não parecem tratados como objetos objetificados ou coisificados, e apesar de Bellocq ter feito fotos com pano de fundo, as mulheres não parecem plasmadas a cenários inventados com paisagens sombrias nem retratadas em ambientes de severos cortes na delicada psique feminina. E ainda há aspectos intimistas nas cenas que parecem desvelar algo mais que retratos porque parecem documentar alguma coisa, talvez o antes e depois, a mulher vestida e nua, o processo dessa sua aproximação do nu.

É a mesma mulher na mesma porta. À direita seu rosto foi apagado com emulsão. 

Parece a mesma mulher antes com roupa e depois sem roupa e com máscara de carnaval

Sabemos que a longa exposição em placas de vidros exigia um tempo maior de modelagem, isso também sugere que nosso fotógrafo ao escolher essa técnica trabalhava lentamente para não se deslocar tão rápido do ambiente. Sua observação da figura humana coloca em destaque o que não se vê com um olho muito rápido: uma mulher à porta como se fosse sair, outra mulher deitada como se fosse levantar, outra abstraída numa cadeira como se nunca mais dali fosse levantar, outra aparece fixada em um medalhão que está em sua mão e que noutra gravura já aparece em seu pescoço.

Mas o que mais intriga são as fotos nas quais os rostos aparecem riscados, como se fossem cancelados, ou colocados em anonimato. Há muitas teorias, algumas lendárias, como a que seu irmão, padre, teria manchado muitos desses rostos com emulsão. Para além das especulações o que se sabe é que vemos o lugar mais ultrajante que o país já teve pelos olhos de um homem que cresceu no seu entorno, e por uma fraqueza, ou não, capturou a existência à beira do modernismo.


Essas percepções de uma intimidade casual e confortável que pode ter proporcionado ao fotógrafo suas visões mais explícitas e enigmáticas o deixam ali entre um documentarista e um voyeur à moda francesa de Baudelaire. Enquanto o mundo arde de interesse artístico pelas linhas elegantes da forma humana pós renascimento onde o poder feminino vibra nos contornos secos de econômicas ocupações de espaço, nosso fotógrafo passeia pelo ambiente observando o gênero humano mulher e aponta para o ponto de vista do desejo heterossexual do curioso no cotidiano onde o poder real da mulher desequilibra o glamour dos grandes estúdios e suas fotos artificialmente projetadas com especiais jogos de luz para a exposição do corpo perfeito, da musa etérea, inacessível, e inventada.