quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Afinidade entre autor e fotógrafo: a sintonia que produz obras primas no cinema

setembro 01, 2021 | por Anônimo



Na criação de um filme, o diretor de fotografia é o responsável por transformar palavras e ideias em imagens. Pela utilização de recursos como técnicas de enquadramento, de iluminação, tipos de câmeras, formatos de filmes, filtros, lentes, movimentos de câmera, cores, tempo de exposição e mais, com muita erudição e versatilidade criadora, é o fotógrafo quem traduz, em ultima instância, o conceito do autor da película em uma historia visual.

Para isso, portanto, é necessário que o diretor de fotografia tenha, além de genuíno interesse pela obra a ser fotografada, uma profunda e verdadeira afinidade com o diretor geral. Se não houver uma unidade de estilos e objetivos, o resultado pode ser desastroso.

É verdade que o entrosamento deve existir em toda a equipe para que o projeto flua, em qualquer setor do cinema ou de outro qualquer outro trabalho. Mas a afinidade entre esses dois diretores deve ser ainda mais profunda e contar, até mesmo, com a empatia: o fotógrafo que vai “imaginalizar” as palavras de um roteiro deve apreender a intenção do autor-diretor, em suas várias nuances narrativas (iluminação, enquadramentos, movimentos etc). Essa sintonia é tão importante que acaba por definir o estilo do autor, uma vez que o diretor de fotografia consegue expressar exatamente o que ele planejou. E acaba, também, por definir o estilo do diretor de fotografia, sua plasticidade, sua intenção artística. Por isso vemos duplas que, quando se encontram, se agarram a fazerem belas, magistrais e premiadas obras autorais juntos, uma após outra.

Bom exemplo disso, temos em casa: a dupla Fernando Meirelles e César Charlone. Parceiros há mais de 20 anos, criaram significativas obras juntos, grandes sucessos indicados e premiados como: “Palace II” (2001), um ensaio para a obra já planejada, “Cidade de Deus” (2002), pela qual ambos foram indicados ao Oscar de melhor diretor e melhor fotografia (além de melhor roteiro e edição); “O Jardineiro Fiel” (2005), “Ensaio sobre a Cegueira” (2008) e, recentemente, o aclamado “Dois Papas” (2019).

Charlone e Meirelles em tomada externa de “Dois Papas”

Essa sintonia acontece entre os dois desde o início da carreira de Meirelles, que conta em entrevista à Folha-UOL, que foi aluno de Charlone, quando ainda estudava Arquitetura “[...] na primeira vez em que fui filmar, ele era meu fotógrafo e nos tornamos amigos. Tudo que eu sei como funciona, o foco, as lentes, tudo aprendi com o Cesar.”

Charlone, ao falar sobre seus projetos com Meirelles, conta que uma vez foi questionado por um amigo sobre porque não conversara com Fernando, durante um dia inteiro de filmagens de “Cidade de Deus”, que ele presenciou. Ele respondeu:

É isso, a gente não precisa se falar porque a gente fala tanto antes, prepara tanto antes, que quando chega a hora do filme eu já sei o que ele quer, ele já sabe o que eu vou fazer, está tudo combinado. É mesmo um presente [...] O Fernando é um grande parceiro que deixa você dar o melhor de você, com a forma que ele tem de te envolver no projeto, sou grato por trabalhar com o Fernando. É uma troca! (CHARLONE, ABCine, dezembro de 2019)

Outro premiado diretor de fotografia, reconhecido por suas grandes e duradouras parcerias e por sua criativa interpretação e plasticidade, em variados temas e estilos, é o mexicano Emmanuel Lubezki (El Chivo). Entre suas repetidas parcerias com autores renomados e premiados e obras tão distintas entre si, destacam-se algumas que comprovam a impressionante versatilidade e criatividade de El Chivo, como por exemplo:
  • com Alfonso Cuáron, do qual foi colega de classe e formam dupla desde o inicio de suas carreiras. Entre suas obras juntos estão “A Princesinha” (1995), “Grandes Esperanças” (1998), “E Sua Mãe Também” (2001), “Filhos dos Homens” (2006) e “Gravidade” (2013), pelo qual o fotógrafo ganhou a estatueta do Oscar;
El Chivo e Alfonso Cuáron. “Conheci Alfonso muito tempo atrás, antes de ele nascer.”
  • com Alejandro González Iñárritu, para quem o mestre mexicano fotografou “Birdman, a Inesperada Virtude da Ignorância” (2014), e “O Regresso” (2015). Ambas, também premiadas pela Academia na categoria fotografia, falam por si quanto à versatilidade criativa do fotógrafo mexicano;
Lubezki e Iñárritu filmando Michael Keaton para “Birdman” (Alison Rosa/Fox Searchlight Pictures)

  • com Terrence Malik, com quem Lubezki atuou, de forma brilhante, em seis obras marcantes: “O Novo Mundo” (2006), “Árvore da Vida” (2011), “A Maravilha” (2012), “Amor Pleno” (2013), “Cavaleiro de Copas” (2015), “De Canção em Canção” (2017). Certa vez questionado sobre as semelhanças existentes entre Cuáron e Malik, Emmanuel respondeu: “Para Alfonso e Terry, a cinematografia e as imagens não são um ramo, não fazem parte do filme, mas são o filme (...) E é por isso que adoro trabalhar com eles, porque acreditam que é possível expressar emoções visualmente.” – grifo do autor - (LUBEZKI, Dez, 2013)
Há que se citar ainda, e imperiosamente, o premiadíssimo Roger Deakins e suas expressivas e constantes parcerias em vários títulos memoráveis com os Irmãos Coen, Dennis Villeneuve, Sam Mendes (indicado 15 vezes ao Oscar, levou duas estatuetas, por Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve e por “1917”, de Sam Mendes), entre outros “imortais” da sétima arte, aqueles que reconhecem e valorizam a preciosidade que é um fotógrafo que capta e transmite sua ideia com maestria, arte e fidedignidade do escopo.

Roger Deakins e Villenenuve filmando “Blade Runner 2049”

A lista de parceiros fiéis seguiria imensa, com pares de mestres como Janusz Kaminski e Spielberg, Vittorio Storatto e Copolla, Bertollucci, Saura e Allen, e por ai vai. Porém, com esses poucos, mas expressivos exemplos, pode-se afirmar que são vários os autores que valorizam e priorizam sua afinidade com o fotógrafo e perpetuam suas parcerias harmônicas em esplêndidas e peculiares obras primas, que nos surpreendem e deliciam a cada lançamento.

“Tens que estar em ligação com o diretor de cinema.
Não era apenas um filme. Era o sonho dele e ele é um sonhador.”
Vittotio Storato sobre Francis Ford Coppola em “Apocalipse Now”
(O Observador, Novembro de 2017)