“Dawn”, 1909. Acervo Metropolitan Museum of Art/Art Resource
Continuando com o tema da semana passada, quando começamos a refletir sobre retratos nus - que fotógrafas de todas as partes do mundo estão praticando, retratando a si mesmas ou outras mulheres, produzindo novas perspectivas -, trazemos hoje uma reflexão sobre a artista norte-americana Anne Brigman (1869-1950), pintora que se voltou para a fotografia de nu, tornando-se pioneira desse gênero artístico.
“The Bubble”, 1906. Acervo Wilson Center for Photography
Brigman foi uma artista cujo trabalho colaborou na jornada das tradições modernas feministas, sendo uma das primeiras a se fotografar nua. Ela publicou poesia e crítica de arte, e foi eleita por Alfred Stieglitz como membro da Photo-Secession (o grupo cogitava que o mundo da arte visse a fotografia como “um meio distinto de expressão individual”, como as artes tradicionais da época). Em 1906 foi eleita Fellow - a única fotógrafa com o título. Porém, caiu em esquecimento depois de sua morte, sendo novamente lembrada na última década. Recentemente, em julho de 2020, teve uma exposição anunciada na The Grey Art Gallery (cancelada por conta da pandemia). Buscando entender porque nossa fotógrafa dizia que tinha compromisso com a estética e a filosofia, descobrimos alguns motivos para perseguir a liberdade desejada na fotografia de nu.
“Soul of the Blasted Pine”, 1906. Acervo Wilson Center for Photography.
No começo, Brigman inspirava-se na mitologia pagã e no romantismo. Suas primeiras imagens, muitas vezes, foram feitas com suas irmãs como modelos. Eram composições de sonhos, com representações idealizadas de mulheres em meio a flores ou envoltas em tecidos finos. Mas conforme sua prática se desenvolveu, Brigman se afastou das representações da inocência feminina, e provavelmente chegou ao ponto para o qual se deslocava desde as primeiras intenções. Os títulos que ela dava às suas imagens são muito simbólicos (“A Fonte”, “Santuário”), mas as próprias imagens extraem seu poder de um toque material e corporificado.
“The cleft of the rock”, 1907. Acervo The Met
Em seu percurso ela fez da natureza seu estúdio. Caminhava pelas espetaculares e remotas montanhas de Sierra Nevada na Califórnia carregando uma câmera quatro por cinco, tripé de madeira, chapas fotográficas e equipamentos para estadias prolongadas. Naquele ambiente hostil, selvagem, rústico, primitivo, estendia ou encolhia seu corpo macio contra árvores e rochedos. Em algumas películas é possível ver torções e retorções do corpo, sua exposição ao vento e ao frio; e alguma mimetização entre as formas orgânicas.
“Finis”, 1910. Acervo The Met
Buscando realizar convivência (ou conflito) do corpo com o espaço natural - da matéria com o espírito, como diria Bergson - nossa fotógrafa fez uma práxis radical para o início de 1900, assim como muito revolucionária por fazer isso ao ar livre, em lugar público, embora deserto, desocupado e quase desolado. Nas fotografias etéreas reproduzidas em filme suave e transparente, ela e as outras mulheres são retratadas nesses espaços não confinados do oeste americano com seus penhascos rochosos - uma paisagem certamente selvagem. E se tomarmos a práxis como metáfora, podemos dizer que seu trabalho com os nus atravessa essa ponte entre dois séculos de arte e cultura predominantemente patriarcal em sua inversão de valores no modo de ver a figura feminina sempre como mulher-modelo, como objeto idealizado para o consumo masculino, não cabendo espaço para tratar de assuntos subjetivos próprios do universo feminino, suas realidades, seus desejos e vontades. Assim, Brigman, em contraste com o habitual, torna-se a pioneira em se apropriar da fotografia para tratar subjetivamente questões do corpo dentro de um perfil de fotografia autoral.
“The Storm Tree”, 1911. Acervo MoMA
A liberdade subjetiva e objetiva que nossa avantgard buscava nos nus, tinham fundamentos na filosofia da liberdade e também trazia uma marca mais dolorida e sofrida. Brigman sofreu um ferimento físico num passeio de navegação com seu marido. O ferimento deixou uma infeliz e forte cicatriz no seu seio esquerdo. Em seus autorretratos, ela costumava esconder a desfiguração manipulando os negativos com grafite e tinta ou lixando a emulsão. Ela nunca comentou publicamente sobre sua lesão. Mas não é difícil imaginar que isso poderia ter contribuído para seu interesse em passar de uma representação das mulheres como deusas da terra, para mulheres mortais.
“Heart of the Storm”, por volta de 1912. Acervo Wilson Center for Photography
Constantemente interessada pelo sensual, pelo gestual, pela interanimação dos seres humanos e pelo mundo natural, tal como o poeta Walt Whitman (“Leaves of Grass”), a fotógrafa persegue essa representação, como por exemplo em “Dawn”, quando coloca seu corpo nu em primeiro plano da vista do lago Donner. Seu corpo domina a sublime vastidão do cenário além dela, mesmo enquanto suas curvas ecoam visualmente as montanhas que cercam o lago. Ou quando em “Soul of the Blasted Pine”, representa a mulher nua saindo do toco de uma árvore com a mesma atitude épica como fez Eugène Delacroix na romântica obra-prima “La Liberté guidant le peuple”, de 1830. Longe ver seus nus como personificação dos desejos sexuais ocultos, como Freud e Havelock discutiam na época, ela os via como uma manifestação espiritual, parte central para a experiência humana, que os críticos idealizaram como uma bela luta.
Fontes: The Gray Art Gallery, The Metropolitan Museum, Christie's, The New Yorker, Artsy