Neuroses e suas intransigências
Foi em 2022 que nasceu a série “Zones Grises” (Áreas Cinzentas). “Eu estava então numa grande crise de meia-idade, questionando tudo”, lembra a fotógrafa. Para tentar dar sentido a esse tumulto existencial, ela mergulha em suas imagens e inicia uma viagem introspectiva até as fronteiras de sua própria intimidade. “A série conta migalhas de mim, fragmentos dispersos. Encontros que se cruzam e depois desaparecem. Tentei dar vida aos meus medos enterrados, aos meus demônios teimosos, às minhas feridas mal curadas, aos meus fantasmas ancorados”, confidencia. Da doçura de um abraço fugaz nas salas escuras de um cinema às dobras de pele enrugada e retorcida. Dos olhos fechados de uma criança perdida num sonho, aos fechados para a eternidade de um animal caído no chão, Vanda Spengler faz do seu projeto um espaço onde as nuances se multiplicam e são tingidas de profunda nostalgia. Num monocromático cru, em que os flashes parecem gritar, desfigurar, maltratar, ela marca esse período de transição com folha de flandres.
Um gesto corajoso que lhe parece emblemático da escrita fotográfica feminina: “Tenho a impressão de que a maioria dos meus colegas revelam a sua coragem nas suas imagens e colocam muita intimidade na sua abordagem. Muitos de nós começamos com autorretratos para recuperar uma visão tantas vezes alterada (...) Zones Grises empurra um pouco mais o cursor da simplicidade, talvez. Isso me permitiu mudar algumas falas, aceitar minhas neuroses e suas intransigências”, diz ela. E, na escuridão que o rodeia, revela aparições repentinas. Belos ou monstruosos, estes nos guiam pelas trevas, revelam dúvidas e medos, desejos e carências. Iluminam ligações carnais e descargas de adrenalina, os fragmentos de silhuetas que se tornam ruínas, danificadas pelo tempo e aqueles, subitamente tão frágeis, de cadáveres de insetos abandonados. Destacam o frio lá fora, quando a ausência nos faz perder o rumo do lar, e o calor de um sorriso infantil com descuido contagiante. Cheio de nuances e explorações variadas, “Zones Grises” parece uma homenagem à existência, em toda a sua complexidade. “A degradação de todas as coisas é um tema essencial para mim. Devemos lembrar que cada dia nos aproxima da morte, mas que podemos nos agarrar aos poucos belos ramos de vida e de partilha que estão à nossa disposição apesar de tudo”, conclui a autora.