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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Tragédia de Macbeth: Luzes e sombras em contrastes que desenham consciências

fevereiro 23, 2022 | por Anônimo

Cenários geométricos estrategicamente iluminados

Respeitosamente fiel à obra de um dos pais do teatro, Shakespeare, a cinematografia de “A Tragédia de Macbeth”, de Joel Coen, 2021, é notável essencialmente por usar os recursos do teatro, num audacioso preto e branco, com cenários que, ao mesmo tempo que imponentes, enormes e profundos, são minimalistas no que tange a detalhes, como um palco. Além disso, através de perceptíveis influências do Expressionismo alemão e algumas pitadas do grande mestre um dos primeiros a filmar a tragédia, Orson Welles, em “Macbeth – Reinado de Sangue”, 1948 - como a grandiosidade dos cenários, os contrastes em p&b, a dramaticidade dos atores -, Coen traz uma versão única e imponente do texto do poeta britânico.


Kathryn Hunter (as 3 bruxas) e os diretores Joel Coen e Bruno Delbonnel, nos bastidores de “A Tragédia de Macbeth”

É expressiva e determinante a direção de fotografia de Bruno Delbonnel, o veterano com cinco indicações ao prêmio da Academia e parceiro do diretor em “Paris, Je T'aime” 2006, “Inside Llewyn Davis”, 2013, e “A Balada de Buster Scruggs”, 2018, além de outras admiráveis obras de destaque admiráveis como “Across the Universe, 2007, “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001 e tantas outras preciosidades( veja filmografia completa em adorocinema.com). Delbonnel, em perfeita sintonia com os objetivos de Coen, atua de maneira a destacar a contradição da gananciosa consciência humana conduzida por ideias externas às quais se deixa levar e seduzir. Com o intenso antagonismo do preto e branco, em matizes contrastantes e em paisagens geométricas profundas, imensas e vazias, a fotografia é recurso fundamental em evidenciar o profundo atrito moral interior dos personagens principais e, ao mesmo tempo, a pseudo grandeza de um reino (tudo tão vazio).

Profundos, vazios, ressonantes

Em cenas que destacam os personagens e suas falas com closes perturbadores, que levam o espectador a perceber seus profundos e antagônicos sentimentos, Delbonnel utiliza-se, ainda, de preciosas técnicas de iluminação que geram sombras em cenários espartanos para desenhar, dramática e cruamente, a angústia de consciências humanas em momentos de grandes decisões. O resultado é que ficamos meio hipnotizados diante de tamanhos contrastes, imensidões e close-ups com palavras tão intensas. Há que se parar em certos trechos, revê-los e apreciar a plasticidade da cena.

Denzel Washington como Macbeth

Outro recurso utilizado e que dirige o olhar do espectador, fechando-o ainda mais na cena, é o formato 4:3 de tela, mais quadrado — diferente do usual widescreen, em 16:9, horizontal. “Queríamos focar no ritmo da linguagem de Shakespeare e no poder das falas, e não há nada melhor para close-ups e estabelecer a presença do ator na tela do que o quadro da Academia. Se você pensar na mesma cena em anamórfico, você tem muito ar dos dois lados, o que para nós seria contraproducente” explicou Delbonnel em entrevista ao site IndieWire.

Frances McDormand como Lady Macbeth

Além de Welles e Coen, outros grandes mestres também se encantaram com a tragédia e a realizaram como Akira Kurosawa em “Trono Manchado de Sangue” (no Japão, “O Castelo Teia de Aranhas”), 1957, que ousadamente adaptou uma obra ocidental para um cenário e tradições orientais e Roman Polanski, (entre outros tantos, pois este texto originou mais de 25 filmes) em “Macbeth”, 1971, que se destaca pela crueza e violência da narrativa. Ambos também sensacionais e imperdíveis.

Mesmo focando em cinematografia, lembrando que uma equipe cinematográfica vai além da diretoria, não podemos deixar de destacar o brilho de toda a equipe do projeto. E às brilhantes e intensas atuações dos ícones da dramaturgia cinematográfica, Denzel Washington (como se o papel tivesse sido feito pra ele, há 400 anos atrás) e Frances Louise McDormand (esposa e parceira de Coen em várias obras), na sutileza crua da determinação de Lady Macbeth. Percebe-se todos tão profundamente envolvidos no objetivo, todos no mesmo ritmo, na mesma sintonia, fatores que tornam possíveis e perceptíveis a poderosa harmonia e o equilíbrio no resultado final desta obra de arte, mesmo que ela narre sobre desequilíbrios e desarmonias.

Cena de Macbeth

Como ressalta Delbonnel: “Este filme é sobre ritmo. É sobre a luz ser um ritmo dentro do ritmo da linguagem, e o ritmo da forma, como os atores caminham pelo set, e há o ritmo do design, do som e da música. É um ritmo dentro de um ritmo dentro de um ritmo.”

Delbonnel no ritmo de Macbeth

O bardo inglês, com certeza, se comoveria com esse ritmo e aplaudiria de pé. Vale ver, sentir e refletir. Mais de uma vez.

 

 "O sino me convida.
Não ouça, Duncan; pois é um toque
que te chama para o céu ou para o inferno

- William Shakespeare, Macbeth , 2.1

 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Entrevista: Adrian Teijido, diretor de fotografia de "Marighela"

novembro 24, 2021 | por Anônimo

Teijido filmando com a câmera na mão, em planos fechados, principal técnica utilizada no filme

Quando soube do lançamento de “Marighela", me animei. Desde que fora lançado, apenas em Berlim, em 2019, por problemas aqui que me abstenho de abordar, fiquei ansiosa por assisti-lo. Ao ver o trailer, já me entusiasmei bastante, a fotografia é impactante e pensei: “vou escrever sobre esse filme”. E fui além: porque não tentar umas palavras do diretor de fotografia, Adrian Teijido? Juntei toda minha audácia, mesclada da humildade de uma admiradora de sua obra, e chamei-o no Instagram. Ele me respondeu em poucas horas, muito atencioso e gentil, dizendo que estava filmando na Amazônia, mas que em 2 dias retornaria a São Paulo e poderíamos conversar. E assim foi.

Adrian Teijido, consagrado e premiado diretor de fotografia, nasceu em Buenos Aires, Argentina, e foi radicado no Brasil, em 1968. Seus pais vieram de uma Argentina golpeada e Adrian conta ter vivido momentos de tensão aqui, em sua infância e adolescência, durante a ditadura militar. Ele foi presidente da ABC - Associação Brasileira de Cinematografia - e faz parte da atual diretoria. Detentor de diversos prêmios, Adrian demonstra um profundo envolvimento em seu trabalho; mergulha-se em profundas pesquisas, inúmeros testes, envolve-se nas buscas de soluções e se doa abnegadamente à produção. Tamanho envolvimento salta aos olhos na intensidade e primor de suas obras.

Difícil, porém, é falar da fotografia de "Marighela" sem creditar o devido mérito a todas as equipes envolvidas. É perceptível, logo no início da película, uma intensa sinergia nas equipes de produção, tão engrenados e sintonizados numa harmonia de interesses que impressiona. Ninguém estava ali por acaso. E não é para menos. Conduzidos pelo experiente e premiado ator Wagner Moura, estreante na direção, mas com tão intensa carga de atuação, que soube unir toda a equipe em torno do objetivo final, com a empatia e a maestria da vivência adquirida em sets. Como destaca Teijido,“a liderança do Wagner é muito cativante”.

Teijido em filmagem de sequencia de ação em cenas externas

A equipe cinematográfica deste trabalho expressa fiel e primorosamente os desejos do diretor em sua intenção maior: a do realismo. Conforme Teijido, a ideia era transmitir, o mais realisticamente possível, a história insistentemente boicotada pela mídia brasileira por décadas. Para criar essa atmosfera documental e narrar eventos baseados em fatos reais, eles apostaram numa fotografia com paleta quase sombria, quase noturna, com pequenos toques em vermelho terroso, que transmitem a ideia de um mundo comum, jornalisticamente “normal”, mas também um mundo (omitido pelo “sistema” que calou a mídia) de questionamentos, batalhas e expectativas: um mundo humano, com suas desumanidades (ou melhor seria dizer, um mundo desumano, com suas humanidades). O filme é sensorial desde o início, na sequencia dos intensos e intermináveis 4 minutos do assalto ao trem, realizadas com câmera na mão e planos, em sua maioria, fechados e intimistas, em ações rápidas e tensas, que nos inserem involuntariamente na alma dos personagens. E começamos a ver com seus olhos e a sentir suas sensações, as emocionais e as físicas. Algumas bem fortes e cada vez mais sinestésicas ao longo da narrativa. Lembra aqueles filmes transmitidos em telas de 180 graus, em que parece que estamos “lá”, na cena, no fato. Dá taquicardia.

Frederico Pinto, Wagner Moura e Adrian Teijido

Mas, em contraponto, há também poesia, expressa principalmente pelas imagens do revolucionário e seu filho, Carlinhos, no mar. E pelas cartas gravadas pelo pai ao filho, em belas e suaves imagens. Momentos em que conhecemos um Marighela com anseios e frustrações marcados pela dualidade de uma paternidade distante, porém profundamente existente. Apesar de melancólicas, são imagens mais claras, ainda em tons secos e frios, mas com mais verde e azul, que geram, na narrativa dura, certa doçura e esperança, algum equilíbrio entre a dureza da vida politica e revolucionária e a suavidade de uma possível (?) vida familiar.


Pai e filho na praia

Bem, deixemos os melhores e curiosos detalhes e curiosidades para o maestro de tão reveladoras imagens. Com a palavra, Adrian Teijido.

Qual foi a concepção do objetivo principal colocado pelo diretor para a cinematografia do filme?

Logo que comecei a conversar com Wagner, percebi o que ele queria. Apesar de ser sua primeira direção, o fato de eu conhecer suas atuações e de já termos trabalhado juntos em Narcos, fez com que eu entendesse bem o estilo dele. E ele sempre tinha claro o que queria, o jeito que ele pensa é muito do ponto de vista do ator, ele gosta da câmera na mão, envolvida na trama, próxima dos atores e da forma mais livre possível, sem marcas, o que dificulta bastante os enquadramentos. Mas entendi o que buscava: que a cinematografia se aproximasse do documental, ele queria que vissem que aquilo fosse real, muito real. Esse conceito documental leva o espectador a acreditar o máximo possível, faz com que veja o filme como realidade, sem pirotecnia, sem glamourizar a realidade.

Seu Jorge, Wagner Moura e Adrian Teijido no set de filmagem

Quais foram os caminhos tomados pelas equipes de cinematografia para viabilizar esse conceito?

Uma vez estabelecido o conceito, Gabriela Cassaro fez uma intensa pesquisa de imagens de filmes políticos, para a gente ver o que ele gostava o que não, desde os Irmãos Dardenne, que ele gosta muito, Costa-Gravas, A Batalha de Argel, entre tantos outros. Frederico Pinto, diretor de arte, pesquisou sobre a época, em são Paulo e Rio, mergulhou na criação de uma paleta que transmitisse a época, foi descobrindo referências em filmes de ficção, de arte, como eram estas capitais em cores, figurinos, texturas, carros. Assim, a coisa foi ganhando forma.

Pouco antes de filmar, fiz testes, acho fundamental fazer os testes. Pedi atores semelhantes, com tons de pele parecidos com a de Seu Jorge e os outros e filmamos mesmo, com figurinos e locações; e filmei muito com câmera na mão, tomadas diurnas, noturnas, externas, internas. Fiz a pesquisa das cores, das texturas. Foca (Luciano Foca, da O2 Filmes) foi o colorista e conseguimos definir o conceito. Levei para o Wagner e o Frederico e concordamos com a paleta.

Em paralelo, a Fátima Toledo trabalhava os atores por meio de palestras e encontros com membros da ALN (Aliança Libertadora Nacional) e outras pessoas referenciais da época, que relataram suas vidas, as técnicas de tortura sofridas por eles, tudo o que vivenciaram na ocasião. Nós assistíamos aos ensaios com o Wagner, o que nos ajudou a perceber a intensidade dos atores, completamente imersos no conceito do filme.

Toda produção cinematográfica tem inúmeros desafios. Quais foram os maiores desafios que vocês enfrentaram para respeitar a concepção do filme?

Todo filme é um desafio mesmo, a gente espera sempre o máximo de tudo, captação, atores, era uma produção grande, mas nunca tinha o dinheiro suficiente, a gente quis locações que não conseguiu. Fotografar filmes de época em São Paulo e Rio é muito complicado, está tudo destruído, o prédio antigo tem, ao lado, um moderno. Chegamos a considerar fazer em Montevidéu, porque lá conseguiríamos prédios de época melhores, mais carros antigos, o clima melhor. Filmamos em Cachoeiro na Bahia, as cenas de Salvador, pois é parecido com a Salvador da época. Eu adoro a sequencia em que o filho do Marighela entra no mar e vem a musica do Gonzaguinha como trilha. Nesse momento da produção a gente já não tinha mais tempo nem grana, fomos no dia de nossa folga, com equipe reduzida, às 2 da manhã... E a natureza no presenteou com um lindo dia, era dia de Iemanjá e Wagner, como bom baiano, ligado no candomblé... Foi muito mágica a energia desse dia, todo mundo lutando contra o tempo. Outro momento difícil foi quando, no inicio da produção, e já em fase de ensaios, o Mano Brown, que era o protagonista, teve que deixar o filme, por problemas de excesso de compromissos. Foi um trauma, um atraso, mas são coisas que acontecem. Sem contar o fato dei termos que lançar o filme em Berlim e não aqui. Tivemos e vencemos grandes obstáculos.


Cena da explosão com Humberto Carrão

Ao assistir ao filme, a gente percebe uma sinergia intensa entre as equipes técnicas e atores. E a relação com Wagner, como você a define?

A liderança do Wagner é muito cativante, é impossível ter atrito com ele, a não ser que você pise na bola mesmo. Mas é preciso entendê-lo, ele é muito exigente, sério, mergulhado no trabalho. Ele se envolve intensamente, então tem que sacar e embarcar junto e, uma vez que isso acontece, é impossível ter atrito, é um set intenso e sério. Sou muito grato por ter tido essa oportunidade de trabalhar com ele de novo e, também, por tê-lo como amigo. Eu o admiro profundamente, é um cara muito compromissado com suas ideias.

Marighela e Carlinhos voltando da praia

Para finalizar, nos fale um pouco sobre a importância desse filme para você.

Esses momentos de tensão da ditadura sempre estiveram presentes em nossas conversas familiares. Apesar dos eventos terem ocorrido há 50 anos - tenho 58 anos, vivi um pouco distante desses fatos - meus pais, também da área do audiovisual - pai publicitário e mãe atriz e produtora - estavam sempre atentos e tinha muita tensão nesta época. Viemos da Argentina em 68 e, crescendo aqui no Brasil, sentindo as tensões de meus pais, fui entendendo o que a gente vivia com bastante clareza. Hoje, sabemos que as gerações novas não têm noção do tamanho da truculência que houve em tudo o que aconteceu. Pessoalmente, eu sempre acreditei que mostrar a verdade era importante para deixar muito claro o tamanho da atrocidade e da violência do que houve. Infelizmente é muito importante que tudo seja mostrado assim, com crueza, pois é fundamental entender a intensidade do que ocorreu.

“Uma ideia não pode ser assassinada, meu filho.
Nem com um tiro, nem com mentiras.”
- Carlos Marighela

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma breve turnê pela cinematografia do horror

outubro 27, 2021 | por Anônimo

Fechando o mês das bruxas, convoco os corajosos a um breve passeio por filmes de terror e suspense que marcaram o cinema


Imagem de “Nosferatu”, 1922

Os medos e horrores da humanidade mudam constantemente. Faz parte da evolução darwiniana superá-los e adquirir novos a vencer. Assim, o que era terrível ontem, amanhã pode ser apenas engraçado, ou mesmo, sem graça alguma. Tal fenômeno pode ser observado no cinema, a arte mais capaz de retratar a vida real ou a transformá-la em ficções assombrosas. De filmes hoje insossos, mas referenciais, a verdadeiros terrores da atualidade, as histórias contadas pelo cinema vêm traduzindo nossos medos e horrores em enquadramentos, luzes, sombras e efeitos cada vez mais arrojados e realistas. Fenômenos como guerras mundiais, recessões, crises políticas, genocídios e desastres da natureza foram modificando nossos temores e incutindo novos elementos inspiradores a estas obras. E a tecnologia cinematográfica não ficou para trás. Cada vez mais realista ou fantástica, ela tem nos proporcionado momentos de horrores cada vez mais reais e amedrontadores. Isto não se deve somente a melhores tecnologias, mas, também, às vivencias e a criatividade dos autores e fotógrafos ao produzirem suas obras assustadoras.

Proponho, aqui, um breve passeio cinematográfico de horror por algumas obras imperdíveis, que marcaram por produzirem, através de técnicas fotográficas inovadoras, tensões e horrores que nos geram sintomas como taquicardias e “embrulhos” de estômago e a enxergar como a vida real é mais tranquila diante disso. Bem, quase sempre.

Cena de “O Castelo do Diabo”, 1896

Para abrir o caminho dessa pequena, porém significativa jornada, invoco o primeiro filme de terror da cinematografia, produzido logo no ano seguinte ao nascimento do cinema, em 1896. Com pouco mais de três minutos de duração (uma novidade, pois os filmes tinham ate um minuto ou pouco mais), “O Castelo do Diabo”, de George Méliès, retrata os temores de Mefistófeles na expectativa da virada do milênio (este um medo recorrente da humanidade, até hoje). Com uma câmera parada e alguns efeitos de luz, o primeiro grande mestre, o ilusionista do cinema, o “pai dos efeitos especiais” surpreendeu com seus cortes criativos, que geravam a aparição repentina de fantasmas, caldeirões ferventes, o diabo e o primeiro vampiro das telas. Tudo ali era novidade, criações visuais sensacionais do imaginário humano. Assista abaixo:


Hoje considerado uma comédia de terror, na verdade “O Castelo do Diabo” foi precursor em muitas técnicas de manipulações fotográficas do cinema do horror. Seres que se transformam, desaparecem ou surgem do nada existiam apenas nos quadrinhos e no teatro. O mais interessante foi que Méliès descobriu acidentalmente como fazer tais efeitos. Sua câmera teve um problema de travamento e ficou filmando aleatoriamente. Ao revelar, ele percebeu as coisas e pessoas aparecendo do nada e sumindo de repente. Imaginem a sensação do diretor.


Cena de “Nosferatu”, 1922

Nossa segunda parada é no também precursor “Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror", de Friedrich Wilhelm Murnau, 1922. Primeira película baseada no romance “Drácula”, de Bram Stoker, inspirou, em seguida, a segunda versão com o mesmo nome, dirigida por Werner Herzog, em 1979 e mais tarde a adaptação de Francis Ford Coppola, em 1992 (que dispensam comentários) entre tantos outros, sobre o lúgubre personagem. Com fotografia de Gunther Krampf e de Fritz Arno Wagner, a plasticidade da película inovou e inspirou significativamente o Expressionismo, (movimento artístico pós Primeira Guerra em que o cinema foi utilizado para expressar as angústias e as dores do período), que nascia na Alemanha pré-hitleriana. Em cenários sombrios e sinistros, vê-se contrastes carregados de chiaroscuro, uma influência italiana proporcionada pelos tons do preto e branco, além de imagens distorcidas, fantasmagóricas, que remetem a pesadelos, a uma sensação do sobrenatural que gera medo, muito medo. Esse visual macabro, inovador à época, foi e é intensamente repetido nas obras deste estilo.


A cena do chuveiro de “Psicose”, 1960, é uma das mais icônicas do cinema

Seguimos e, então, chegamos ao mestre dos mestres do terror psicológico, Sir Alfred Hitchcock, o rei do suspense. Mas o que é o suspense senão o terror mais profundo do que pode vir a acontecer? “Psicose”, de 1960 é exemplo clássico de uma obra que aterroriza partindo da alma, de dentro e empiricamente, atinge a pele e sai pelos poros. O mestre inspirou quase todos que vieram pela frente e fez isso, fundamentalmente, com seu estilo e suas técnicas fotográficas inovadoras. Seja por meio da captação de expressões faciais intensas, ou em tomadas de ponto de vista externo, em tomadas que conduzem interpretações (plongée e contra-plongée, por exemplo) ou mesmo em travellings rápidos e subjetivos que suscitam o medo, a ansiedade e até efeitos físicos, como tonteiras e vertigens, o diretor, mais do que um mestre do suspense, era expert em captar e gerar fortes sensações no espectador. Se você deseja se aterrorizar com classe e estilo, assista a filmografia completa, são todos de arrepiar os cabelos e a alma.


Cena de “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, de 1964

Nesta turnê não podemos deixar de passar pelo brasileiro mais aterrorizante de todos os tempos, o temeroso e cruel Zé do Caixão. Em “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (o título já provoca os sentidos), de 1964, José Mojica Marins inaugura o cinema de horror no Brasil, com a mesma fotografia expressionista altamente contrastada de “Nosferatu", inovando, porém, com cenas que, com aspectos de “sujas”, grotescas e com cortes rápidos e bem objetivos, levam a sustos vertiginosos, um atrás do outro. Sem contar a criação deste vilão implacável, referência nacional e mundial até os dias de hoje e apreciado por grandes cineastas do mundo inteiro.


Cena de “O Massacre da Serra Elétrica”, 1974

Cunhando um novo tipo de historias de terror, o slasher, mais violento e realista por se tratar de fatos possíveis, executados por psicopatas que poderiam ser nossos vizinhos e narrados como se fossem verdadeiros, “O Massacre da Serra Elétrica”, de Tobe Hooper, 1974, pode ser considerado meio “pesado” por muitos, mas para quem aprecia o estilo é uma obra de arte imperdível. Produção de baixo orçamento para a época, acabou se tornando um sucesso de bilheteria, ao contar a história de um assassino insano, em plena capital, trazendo o medo para a urbanidade e para a rotina americanas. Na cinematografia de Daniel Pearl, se destaca uma fotografia com paleta sombria que, sutilmente interrompida, deixa a violência sanguinária por conta da imaginação do espectador.


Bruce, o tubarão mecânico sempre avariado, nos bastidores de “Tubarão”, 1975

Nosso passeio chega, agora, ao mar das praias de uma pequena cidade turística americana. Apesar de ser considerado, por muitos, como drama ou até mesmo comédia, o precursor dos blockbusters, “Tubarão”, de Steven Spielberg, 1975, traz de volta a era do monstro cruel que vive ao lado, inaugurada, logicamente, pelo grande Hitchicok, em “Os Pássaros”, 1963. Pesquisas indicam que, no ano de lançamento do blockbuster, o número de pessoas em praias diminuiu significativamente e parece bem difícil, hoje, que alguém que assistiu ao filme entre no mar sem se lembrar da música impactante que conduzia as imagens de aparição (ou a sugestão da aparição) do bicho. O ritmo de suspense, criado por Spielberg, com cinematografia de Bill Butller, se apropria reverentemente das técnicas de closes, movimentos e profundidades, câmera subjetiva e tempo de cena, inaugurados pelo grande mestre Hitchicok, inspiração confessa de Spielberg. A narrativa se desenha, principalmente, pela ausência do animal, o que nos leva à subjetividade tensa do seu olhar faminto, em cenas de mar aberto em total amplitude (que ele fez questão de ser assim, e não em tanques, para transmitir a sensação de pequenez dos protagonistas), que aterrorizam por geraram a incapacidade de se saber onde e quando o monstro vai atacar. O mais curioso é que essa ausência do tubarão nas cenas se deu, inicialmente, pela própria ausência do bicho mecânico no set. Ele estava sempre avariado pela água e maresia e o filme tinha que ser rodado. Veja detalhes sobre essa e outras curiosidades bem interessantes sobre os bastidores do filme.


Cena de “Alien, o Oitavo Passageiro”, 1979

Do mar partimos, sem escalas, para o espaço. Quem assistiu a “Alien, o Oitavo Passageiro”, de Ridley Scott, 1979, com certeza teve taquicardias e embrulhos estomacais. E não tinha nada a ver com o balanço da velha nave, mas sim com um novo motivo de medo: um alienígena mal, irracional e sanguinolento. Mais desconhecido e temido que pássaros cruéis e tubarões, já tão comuns à época, o oitavo passageiro da nave Nostromo aterroriza em cenários de uma embarcação escura, claustrofóbica (a qual, mesmo se contrapondo a amplitude do mar de Spielberg, sugere a mesma impotência) e sufocantemente silenciosa, cenário para as poucas, porém devastadoras aparições do monstro (como em Tubarão?), que conduzem o suspense do inicio ao fim da história. A protagonista, Sigourney Weaver, merece destaque pela atuação brilhante que caminha e ascende na mesma intensidade e em perfeita sintonia com o suspense crescente da narrativa. Obra insuperável, impactante, sensacional - no original sentido da palavra, de provocar sensações.


Cena de “A Bruxa de Blair”, 1999

E do espaço sideral voltamos para a Terra do final do século passado, quando quem torna a amedrontar são as velhas e assustadoras bruxas das fábulas e dos quadrinhos. Inaugurando uma nova narrativa em filmes do gênero, “A Bruxa de Blair”, de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, 1999, é marcado pelo estilo found footage, em que as imagens, gravadas como se fossem registros domésticos e rotineiros e a narrativa em primeira pessoa (ou seja, de quem esta filmando o acontecimento, em tempo real), sugerem se tratar de fatos autênticos. Além disso, “A Bruxa de Blair” inovou na liberdade dada aos atores especialistas em improvisação, o que tornou a narrativa mais realista e intensa. Tais recursos inspiraram significativas obras futuras como “Atividade Paranormal”, de Oren Peli , 2007, e “ REC”, de Jaume Balagueró e Paco Plaza, 2007, entre outras arrepiantes do gênero.


Cena de “O Labirinto do Fauno”, 2006

Bem, como prometido, um breve passeio. Poderíamos viajar por décadas pelas milhares obras de terror do cinema, caso peregrinássemos por todas elas. Cada uma com seu grau e tipo de horror, suas qualidades ou deficiências técnicas, sua atemporalidade ou obsolescência. Porém, todas com suas essenciais peculiaridades truculentas e sensacionais que nos deixam sem ar e, às vezes, ate mesmo com questionamentos existenciais atrozes.

Para encerrar, fica a dica de um conto de terror sombrio, gótico, ao mesmo tempo em que poético, existencialista e fabuloso: “O Labirinto do Fauno”, dirigido por Guillermo del Toro, com cinematografia de Guillermo Navarro, 2006. Obra prima genial que fazer jus a um intenso e exclusivo passeio por todas as suas nuances. Obrigatório até para quem não aprecia o gênero, pois o transcende.

“Eu sou cada pesadelo que você já teve.
Eu sou o seu pior sonho se tornando realidade.
Eu sou tudo o que você sempre teve medo.”
Pennywise em “It: A Coisa”

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Coletivo DAFB – Mulheres e transgêneres unidas para superar a discriminação

setembro 29, 2021 | por Anônimo

Mulheres e pessoas transgêneres da cinematografia se unem em coletivo para superar os desafios do preconceito de gênero no setor mais machista do cinema


A discriminação sofrida por mulheres e pessoas transgêneres não é novidade em nenhuma área profissional do planeta. E não seria diferente no cinema. Porém, no departamento de fotografia do cinema ela é gritante. As desculpas vão de “os equipamentos são pesados”, (o que já não procede hoje, pois os equipamentos estão cada vez mais leves) até “são poucas as profissionais no setor”, o que acontece realmente, mas justamente por causa da discriminação que acaba por afastar as mulheres da função. Como explica Nina Tedesco, diretora de fotografia, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da relação entre gênero e audiovisual, uma das fundadoras do coletivo:

Rapidamente, as mulheres que se interessam pela profissão percebem que os diretores confiam menos nelas, que a equipe contesta mais o trabalho delas e que elas vão precisar brigar a vida inteira em desigualdade de oportunidades e sujeitas a assédio. Isso vai minando a profissionalização dessas mulheres na área. (Revista Trip, fevereiro de 2018)

Em 2016, quando a produtora O2 publicou uma lista de promessas da direção de fotografia nacional totalmente masculina, as diretoras de fotografia e profissionais do departamento decidiram agir. Era inacreditável que uma das principais produtoras do cinema nacional não conhecesse (ou reconhecesse) o trabalho de nenhuma promissora diretora de fotografia, muito menos das profissionais de base. Foi quando elas se uniram e criaram o coletivo DAFB - Diretoras de Fotografia do Brasil. Flora Dias, uma das diretoras fundadoras, esclarece:

Criamos uma base de dados com as fotógrafas de cada estado como um “cala boca” para quem diz que não existimos. É importante exercitarmos nossa autoafirmação. Temos que nos impor como diretoras de fotografia e afirmar o que sabemos fazer. Não vai ser um homem que vai dizer o que posso fazer. Se a gente for depender disso, a gente não trabalha.

Para se ter uma ideia de quão gritante é a ausência de fotografas no cinema brasileiro, entre 1995 e 2015 foram lançados 809 longas-metragens no Brasil. Desse total, apenas 48 foram fotografados por mulheres e 631, assombrosamente, não tinham sequer uma mulher em toda a equipe de fotografia. Veja os gráficos:


 

Além de compilar e divulgar os currículos das diretoras de fotografia, assistentes e técnicas diversas (mulheres cis e trans), o site do coletivo oferece importantes cursos de imersão, oficinas e debates que contribuem para a profissionalização das associades (termo DAFB, que prioriza o "e" em lugar dos discriminatórios "o" e "a") em inicio de carreira tanto tecnicamente, quanto nas questões da inserção no mercado de trabalho, o maior desafio.

Falta de talento e envolvimento não existe entre elas. Apesar de tantos desafios e dificuldades, no site do DAFB podemos apreciar a carreira de diretoras premiadas em películas lindamente fotografadas. Veja alguns exemplos:

Heloisa Passos

Veterana na cinematografia nacional, Heloísa é referência para a nova geração de fotógrafas e uma das que oferecem cursos e oficinas de formação. Atualmente ela tem garantido os melhores orçamentos no mercado do cinema. Heloísa destaca que iniciou sua carreira independente, quando percebeu que não receberia convites espontâneos. Segundo ela, dois filmes a destacaram no cenário da fotografia nacional e internacional: o longa documentário “Manda bala”, sobre corrupção no Brasil, premiado em Sundance, em 2007, e o longa de ficção “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, dos nordestinos Marcelo Gomes e Karim Aïnouz.
 

Cena de “Viajo porque preciso, volto porque te amo”

Kátia Coelho

Também uma referência atual e fundadora do coletivo, Kátia foi precursora no âmbito feminino da cinematografia nacional. Ela conta que desbravou, sozinha, um universo totalmente machista. “Eu não tinha força para carregar todo o equipamento, então colocava a câmera em uma mochila de escoteiro.” Ela trabalhou como assistente de câmera por nove anos, até conquistar seu espaço entre os colegas e assinou títulos como “A via láctea”, de Lina Chamie, com Marco Ricca e Alice Braga, e “Como fazer um filme de amor”, de José Roberto Tourero, estrelado por Denise Fraga e Cássio Gabus Mendes.


Cena de “Como fazer um filme de amor”

Luciana Baseggio

Luciana também teve, em sua carreira, a necessidade de se provar capaz perante os homens. “Eu era arisca quando mais nova e não deixava ninguém me ajudar. Para ser aprovada, a gente acaba exagerando um pouco nessa dose. É uma maneira de a gente se defender. As mulheres têm que sempre que exceder, estar à frente e lutar muito”, ressalta. Foi com essa garra e determinação que ela conseguiu fotografar películas como “Sobre sete ondas verdes espumantes”, dBruno PolidoroCacá Nazario, 2014, “Dromedário no asfalto”, de Gilson Vargas, 2015, “Menos que nada”, de  Carlos Gerbase, 2012, entre outros.


Cena de “Menos que nada”

E como estas talentosas e já veteranas diretoras, tem muitas outras no site do DAFB, algumas ainda principiantes, mas com tantas histórias parecidas, em que os desafios, além dos naturais de qualquer começo, são ainda maiores, alimentados pelo preconceito e pela discriminação de gêneros. São filmografias intensas e inspiradoras que merecem e devem ser apreciadas e estudadas. Pois se o olhar masculino é o que impera no momento, o feminino é o que agrega, compartilha, dá brilho, cor e voz especialmente sensíveis e diferenciados a essa forma tão peculiar de contar histórias que é o cinema.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Afinidade entre autor e fotógrafo: a sintonia que produz obras primas no cinema

setembro 01, 2021 | por Anônimo



Na criação de um filme, o diretor de fotografia é o responsável por transformar palavras e ideias em imagens. Pela utilização de recursos como técnicas de enquadramento, de iluminação, tipos de câmeras, formatos de filmes, filtros, lentes, movimentos de câmera, cores, tempo de exposição e mais, com muita erudição e versatilidade criadora, é o fotógrafo quem traduz, em ultima instância, o conceito do autor da película em uma historia visual.

Para isso, portanto, é necessário que o diretor de fotografia tenha, além de genuíno interesse pela obra a ser fotografada, uma profunda e verdadeira afinidade com o diretor geral. Se não houver uma unidade de estilos e objetivos, o resultado pode ser desastroso.

É verdade que o entrosamento deve existir em toda a equipe para que o projeto flua, em qualquer setor do cinema ou de outro qualquer outro trabalho. Mas a afinidade entre esses dois diretores deve ser ainda mais profunda e contar, até mesmo, com a empatia: o fotógrafo que vai “imaginalizar” as palavras de um roteiro deve apreender a intenção do autor-diretor, em suas várias nuances narrativas (iluminação, enquadramentos, movimentos etc). Essa sintonia é tão importante que acaba por definir o estilo do autor, uma vez que o diretor de fotografia consegue expressar exatamente o que ele planejou. E acaba, também, por definir o estilo do diretor de fotografia, sua plasticidade, sua intenção artística. Por isso vemos duplas que, quando se encontram, se agarram a fazerem belas, magistrais e premiadas obras autorais juntos, uma após outra.

Bom exemplo disso, temos em casa: a dupla Fernando Meirelles e César Charlone. Parceiros há mais de 20 anos, criaram significativas obras juntos, grandes sucessos indicados e premiados como: “Palace II” (2001), um ensaio para a obra já planejada, “Cidade de Deus” (2002), pela qual ambos foram indicados ao Oscar de melhor diretor e melhor fotografia (além de melhor roteiro e edição); “O Jardineiro Fiel” (2005), “Ensaio sobre a Cegueira” (2008) e, recentemente, o aclamado “Dois Papas” (2019).

Charlone e Meirelles em tomada externa de “Dois Papas”

Essa sintonia acontece entre os dois desde o início da carreira de Meirelles, que conta em entrevista à Folha-UOL, que foi aluno de Charlone, quando ainda estudava Arquitetura “[...] na primeira vez em que fui filmar, ele era meu fotógrafo e nos tornamos amigos. Tudo que eu sei como funciona, o foco, as lentes, tudo aprendi com o Cesar.”

Charlone, ao falar sobre seus projetos com Meirelles, conta que uma vez foi questionado por um amigo sobre porque não conversara com Fernando, durante um dia inteiro de filmagens de “Cidade de Deus”, que ele presenciou. Ele respondeu:

É isso, a gente não precisa se falar porque a gente fala tanto antes, prepara tanto antes, que quando chega a hora do filme eu já sei o que ele quer, ele já sabe o que eu vou fazer, está tudo combinado. É mesmo um presente [...] O Fernando é um grande parceiro que deixa você dar o melhor de você, com a forma que ele tem de te envolver no projeto, sou grato por trabalhar com o Fernando. É uma troca! (CHARLONE, ABCine, dezembro de 2019)

Outro premiado diretor de fotografia, reconhecido por suas grandes e duradouras parcerias e por sua criativa interpretação e plasticidade, em variados temas e estilos, é o mexicano Emmanuel Lubezki (El Chivo). Entre suas repetidas parcerias com autores renomados e premiados e obras tão distintas entre si, destacam-se algumas que comprovam a impressionante versatilidade e criatividade de El Chivo, como por exemplo:
  • com Alfonso Cuáron, do qual foi colega de classe e formam dupla desde o inicio de suas carreiras. Entre suas obras juntos estão “A Princesinha” (1995), “Grandes Esperanças” (1998), “E Sua Mãe Também” (2001), “Filhos dos Homens” (2006) e “Gravidade” (2013), pelo qual o fotógrafo ganhou a estatueta do Oscar;
El Chivo e Alfonso Cuáron. “Conheci Alfonso muito tempo atrás, antes de ele nascer.”
  • com Alejandro González Iñárritu, para quem o mestre mexicano fotografou “Birdman, a Inesperada Virtude da Ignorância” (2014), e “O Regresso” (2015). Ambas, também premiadas pela Academia na categoria fotografia, falam por si quanto à versatilidade criativa do fotógrafo mexicano;
Lubezki e Iñárritu filmando Michael Keaton para “Birdman” (Alison Rosa/Fox Searchlight Pictures)

  • com Terrence Malik, com quem Lubezki atuou, de forma brilhante, em seis obras marcantes: “O Novo Mundo” (2006), “Árvore da Vida” (2011), “A Maravilha” (2012), “Amor Pleno” (2013), “Cavaleiro de Copas” (2015), “De Canção em Canção” (2017). Certa vez questionado sobre as semelhanças existentes entre Cuáron e Malik, Emmanuel respondeu: “Para Alfonso e Terry, a cinematografia e as imagens não são um ramo, não fazem parte do filme, mas são o filme (...) E é por isso que adoro trabalhar com eles, porque acreditam que é possível expressar emoções visualmente.” – grifo do autor - (LUBEZKI, Dez, 2013)
Há que se citar ainda, e imperiosamente, o premiadíssimo Roger Deakins e suas expressivas e constantes parcerias em vários títulos memoráveis com os Irmãos Coen, Dennis Villeneuve, Sam Mendes (indicado 15 vezes ao Oscar, levou duas estatuetas, por Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve e por “1917”, de Sam Mendes), entre outros “imortais” da sétima arte, aqueles que reconhecem e valorizam a preciosidade que é um fotógrafo que capta e transmite sua ideia com maestria, arte e fidedignidade do escopo.

Roger Deakins e Villenenuve filmando “Blade Runner 2049”

A lista de parceiros fiéis seguiria imensa, com pares de mestres como Janusz Kaminski e Spielberg, Vittorio Storatto e Copolla, Bertollucci, Saura e Allen, e por ai vai. Porém, com esses poucos, mas expressivos exemplos, pode-se afirmar que são vários os autores que valorizam e priorizam sua afinidade com o fotógrafo e perpetuam suas parcerias harmônicas em esplêndidas e peculiares obras primas, que nos surpreendem e deliciam a cada lançamento.

“Tens que estar em ligação com o diretor de cinema.
Não era apenas um filme. Era o sonho dele e ele é um sonhador.”
Vittotio Storato sobre Francis Ford Coppola em “Apocalipse Now”
(O Observador, Novembro de 2017)

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Pela janela indiscreta do homem que sabia demais

agosto 18, 2021 | por Anônimo

Alfred Hitchcock durante as filmagens de “Os Pássaros”, 1962 | Foto: Philippe Halsman

Considerado por vários cineastas de renome, estudiosos do cinema e cinéfilos como o melhor diretor de todos os tempos, o mestre do suspense Alfred Hitchcock aplicava técnicas fotográficas em suas narrativas que conduziam intensamente as emoções do espectador, do início ao fim de suas histórias. E todos saiam do cinema atordoados.

Para alcançar tamanho primor em suas obras, uma das principais características do influente diretor era a valorização do trabalho em equipe. Apesar de conduzir e definir cada detalhe do filme, Hitchcock confiava em seu time, avaliava suas criações, fossem coletivas ou individuais, e as utilizava, quando as percebia preciosas à narrativa. Foi assim, por exemplo, em algumas de suas sequencias mais famosas, como a do chuveiro, em “Psicose” (1961), que seria muda, até que o sonoplasta Bernard Herrmann mostrou a trilha para a cena e ele acatou-a; e a também célebre e precursora tomada da alusão à vertigem do protagonista, em “Vertigo, Um corpo que cai” (1958), logo no início do filme, uma iniciativa e criação do seu operador de câmera Irmin Roberts, que se tornou famosa como o “Efeito Hitchcock” ou “Efeito Vertigo” ou “Zoom Dolly”.


Cena de “Um corpo que cai” (1958)

Outra marca importante do mestre é a simplicidade. Ele defendia que as pessoas não devem se esforçar para entender sua história, mas sim, se impactar com ela. Foi assim que nasceu a famosa “Regra de Hitchcock”, que diz que “o tamanho de qualquer objeto em seu quadro deve ser proporcional à sua importância para a história no momento”.

Captando e provocando sensações

Dentro dessa regra cabem inúmeros estilos de tomadas, enquadramentos e iluminação, que contribuíram fundamentalmente para a narrativa hitchcockiana, de modo a torná-la emocionante, empírica e inesquecível e, a maioria, capaz de provocar calafrios durante a projeção e em posteriores lembranças. Em tempos em que a fotografia era ainda um recurso pouco explorado como fator narrativo, ele a trabalhou com claros objetivos de condução da história, quadro a quadro, sem desperdício de informação e com toques peculiares (como a fundamental trilha sonora, sempre impactante) que criavam e reforçavam o suspense e prendiam a atenção do espectador durante todo o filme. “O argumento pouco me importa. O que me importa é que a união das partes do filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo o que é puramente técnico possam fazer os espectadores gritarem. O que emociona o público é o cinema puro”, declarou em entrevista concedida a François Truffaut (HITCHCOCK/TRUFFAUT: Entrevistas, 1967).

Seja por meio da captação de expressões faciais intensas, ou em tomadas de ponto de vista externo, ou que conduziam interpretações e sensações (plongèe e contra-plongèe, por exemplo); ou mesmo em travellings rápidos e subjetivos que suscitam o medo, a ansiedade e até efeitos físicos, como tonteiras e vertigens, o diretor, mais do que um mestre do suspense, era expert em captar e gerar sensações no espectador.

A diferença entre suspense e surpresa é muito simples: nós estamos conversando, talvez exista uma bomba debaixo desta mesa e nossa conversa é muito banal e de repente: bum, explosão. O público fica surpreso, mas, antes que tenha se surpreendido, mostram-lhe uma cena absolutamente banal, destituída de interesse. Agora, examinemos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e a plateia sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la. A plateia sabe que a bomba explodirá à uma hora e sabe que faltam quinze para a uma – há um relógio no cenário. De súbito, a mesma conversa banal fica interessantíssima porque o público participa da cena. Tem vontade de dizer aos personagens que estão na tela: ‘Vocês não deveriam contar coisas tão banais, há uma bomba debaixo da mesa, e ela vai explodir’. No primeiro caso, oferecemos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo caso, oferecemos quinze minutos de suspense. Donde se conclui que é necessário informar ao público, sempre que possível, a não ser quando a surpresa for uma virada, ou seja, quando o inesperado da conclusão constituir o sal da anedota (HITCHCOK/TRUFFAUT: Entrevistas, 1967).

Conectando olhares e expectativas

Tomando como objeto o filme “Janela Indiscreta” (1954), pode-se destacar a utilização de tomadas que conectam o olhar e as emoções do espectador às do protagonista. Sobressaem-se as tomadas point of view (ponto de vista), em que se tem a sensação de estar ao lado do personagem que está fora da cena, observando o ocorrido como ele, assim como os movimentos de câmera verticais e horizontais e interrupções bruscas de cenas, com alterações súbitas de direção, acompanhando o olhar do personagem. Na composição dos quadros percebe-se o excessivo “emolduramento” das imagens externas por janelas, em referência clara ao voyeurismo condutor da narrativa, mas que, ao mesmo tempo, limita o olhar e o mundo do protagonista e, consequentemente, do espectador, que só vê o que ele vê. Esses recursos técnicos e artísticos de condução do olhar e de expectativas, tão comuns atualmente, eram inovações na época.


Imagem de “Janela Indiscreta” (1954)

Em “Psicose”, a influência deixada na trajetória da sétima arte é indiscutível. Para o especialista em filmes que tratam do cinema, Alexandre O. Philippe, que produziu o documentário “78/52”, em que analisa em detalhes a cena do assassinato no banheiro, “(...) a sequência do chuveiro em Psicose mudou o cinema e a forma de fazê-lo. O clímax do filme estava no final do primeiro ato. De repente, abriu caminho a outras estruturas fílmicas e a formas modernas de narrar (...)” (78/52, direção de Alexandre O. Philippe, 2018).

Cena de “Psicose” (1960)

Já no thriller “Os Pássaros” (1963), em que se vê seres considerados dóceis atuando como monstros ferozes (semioticamente inovador para a época), observa-se tomadas de pontos de vistas aéreos, sugerindo a visão dos que dão nome à história, além de movimentos de câmeras subjetivos que evidenciam uma analogia do desequilíbrio emocional da protagonista com o ataque dos vilões alados.


Cena de “Os Pássaros” (1963)

Para além de “Psicose”, “Um Corpo que Cai”, “Janela Indiscreta” e “Os Pássaros”, são inúmeras as influências cinematográficas deixadas pelo mentor, em cada uma de suas 53 criações. Tão intensas que acabaram, ironicamente, por se tornarem clichês, fenômeno contra o qual ele sempre lutou. Tais influências podem ser facilmente encontradas em obras primas de vários outros inesquecíveis renomados mestres posteriores a ele, como Martin Scorcese, Francis Ford Coppola, David Lynch, Gus Van Sant, François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol, Wim Wenders, entre infindáveis outros que hoje, às vezes, até inconscientemente, se inspiram no que podemos chamar de cognição hitchcokiana, um modo de ver e interpretar imagens introjetado em todos nós pelo imortal criador de tesouros cinematográficos.

“Somos todos ladrões de Hitchcock”
Wim Wenders

quarta-feira, 28 de julho de 2021

As cores no cinema: Como elas influenciam a narrativa de um filme?

julho 28, 2021 | por Anônimo


Cenas dos filmes da “Trilogia das Cores” de Krzysztof Kieslowski | Fonte: Delirium Nerd

Estudada desde 1666, quando o físico Isaac Newton descobriu o prisma e suas peculiaridades, a influência das cores nos sentidos humanos é cientificamente comprovada.

Mais recentemente, a pesquisa da socióloga Eva Heller, apresentada no livro “A Psicologia das Cores: Como as cores afetam a emoção e a razão” (HELLER, Eva; 1ª edição; ed. Olhares; Maio de 2021), é considerada uma consulta essencial para trabalhar com cores, seja nas artes visuais, na arquitetura, em designs de interiores ou em terapias alternativas.

Agregando uma ampla análise histórico-cultural aos resultados de sua pesquisa, realizada com duas mil pessoas de variados perfis, Heller confirmou que sim, as cores interferem em nossas sensações. Isso acontece através de alguns padrões que estão gravados em nossa mente inconsciente e outros, que vêm do nosso universo social, histórico e cultural.

O significado das cores

Eller verificou, também, que as mesmas cores podem transmitir sensações negativas ou positivas, de acordo com o contexto do filme e ou a cultura do espectador. Por exemplo, de um modo geral, cores quentes como o vermelho, amarelo e o laranja transmitem emoções mais alegres e intensas, como paixão, amor, alegria, erotismo, mas também podem instigar sentimentos de vingança, ciúmes e violência. Isso se deve à percepção de calor e luz solar que os tons nos passam e às nossa referencias culturais e sociais inconscientes. Já as consideradas cores frias como o azul, o violeta e o verde transmitem praticamente o contrário e são usadas para evidenciar sobriedade, equilíbrio, passividade, tristeza, espiritualidade, calma, solidão, infância, introspecção ou um clima frio. A cor preta, na maioria das vezes, é relacionada ao proibido, ao misterioso, ao secreto, à elegância, mas também à tristeza, ao luto. E o branco nos conduz à inocência, à bondade, à paz, à união, à pureza, mas, igualmente, ao vazio, ao neutro.

A semiótica das cores na fotografia cinematográfica

A utilização das cores no cinema gerou muita discórdia no início, como toda novidade tecnológica. Respeitáveis cineastas se posicionaram contra a cor, pois acreditavam que ela tiraria a atenção do espectador do que realmente importa numa história. Em entrevista concedida em 1966, Andrei Tarkovski declarou: “No momento eu creio que o filme colorido não é nada mais do que um truque comercial”. Porém, mesmo com tanta resistência, todos acabaram por aceder aos apelos das cores e passaram a utilizá-la a favor de suas narrativas.

Atualmente é fácil constatar a importância das cores num filme, quando lembramos que, já nas cenas iniciais, elas nos levam a perceber o tipo de narrativa, lugares, épocas, aspectos psicológicos da história e dos personagens. Às vezes, de forma tão obvia que dá nome ao filme, como na trilogia das cores da bandeira francesa, de Krzysztof Kieslowski: “A Liberdade é Azul”, em que predomina nas imagens o azul da serenidade e da harmonia, mas também da tristeza e da melancolia; “A Fraternidade é Vermelha”, em que temos o vermelho representando o amor, a necessidade humana de empatia; e em “A Igualdade é Branca”, em que percebemos a cor branca, de forma mais sutil nas imagens, nos figurinos, porém evidente e representando “o todo”, a união de todas as cores, a possível(?) igualdade. Outras vezes, as cores atuam de maneira pontual e sutil, como em “A lista de Schindler”, Steven Spielberg , em que o vermelho, mesmo meio fosco do vestido da menina, se destaca num cenário em preto e branco sóbrio, melancólico, consternado, remetendo à energia, à vitalidade (frágil, da menina) e à empatia possíveis, em contraposição à crueldade da guerra e suas consequências.


“A Lista de Shindler”, de Steven Spielberg, direção de fotografia de Janusz Kamiński

As cores são uma ferramenta tão fundamental ao se contar uma história cinematográfica, que originam uma paleta exclusiva para cada filme e acabam por definir o estilo do diretor. Quem não ouviu falar das “cores de Almodóvar”? Suas paletas de cores fortes e marcantes acabaram por se tornar sua marca registrada. E as cores fantásticas, escolhidas a dedo para cada cena por Wes Anderson, que inspiram até mesmo a moda e o design de interiores? São inúmeros os exemplos de diretores que valorizam as cores em suas películas.

Portanto, sob a tutela dos diretores geral, de arte e de fotografia, as cores de um filme, além de direcionarem olhares a épocas, lugares e situações e provocar sentimentos e emoções, contribuem significativamente para a plasticidade fotográfica e identidade visual da película, assim como pela definição do estilo dos diretores.

Veja, abaixo, algumas cenas de filmes que se destacam pela utilização das cores em sua fotografia e suas respectivas paletas:


Em “La La Land” (de Damien Chazelle e direção de fotografia de Linus Sandgren, 2016), as cores simbolizam a personalidade dos personagens e sua diversidade


Em “O Cisne Negro” (de Darren Aronofsky e direção de fotografia de Matthew Libatique, 2010), a paleta de cores é marcante, principalmente, nos figurinos da protagonista, que evidenciam, a cada nuance, suas alterações psicológicas em sua evolução na dança e na vida


Em “O Fabuloso Destino de Amèlie de Poulain” (de Jean Pierre Jeaunet, direção de fotografia de Bruno Delbonnel, 2001) a mistura do vermelho (energia, otimismo) ao rosa (pureza) e ao verde (imaturidade), entre tons pasteis (oníricos), anunciam o peculiar mundo da protagonista

“É fácil fazer uma paleta que seja esteticamente agradável,
mas difícil fazer com que ela preste um serviço à história”
Roger Deakins – Diretor de fotografia britânico

Aprecie mais imagens cinematográficas e suas respectivas paletas em Color Palette Cinema.

Fontes:

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Agnès Varda - A fotógrafa que influenciou o cinema mundial

julho 14, 2021 | por Anônimo


Agnès Varda no set de seu filme “Sans toit ni loi”, em março de 1985 | Foto: Micheline Pelletier/Gamma-Rapho

Agnès Varda (Bélgica, 1928-2019) iniciou sua carreira profissional como fotógrafa, o que marcou profundamente sua atuação como cineasta. Tardiamente reconhecida como uma das precursoras da Nouvelle Vague (final da década de 1950), ao lado dos reconhecidos Godard e Truffaut, Agnès influenciou intensamente a linguagem do movimento, através da simbólica e meticulosa narrativa fotográfica de seus filmes, tendo sido referência e inspiração para grandes autores como Ingmar Bergman, em “Persona” (1966), Woody Allen, em “Love and Death” (1975) e David Lynch, em “Mulholland Dr” (2001), entre tantos outros, até hoje.

Logo em seu primeiro longa, “La Pointe-Courte”, em 1955 (aos 25 anos), a autora desliza por uma fotografia marcante, cinemática, cautelosamente desenhada para contar a história com imagens mais protagonísticas que os próprios personagens. Ela costumava dizer que a câmera era sua “caneta” de “escrever” filmes.


Em 2015, Agnès Varda recebeu a Palma honorária de Cannes | Foto: Mathilde Petit/FDC

Sempre com engajamento político e revolucionário, Agnès retratou, a 24 assertivos fotogramas por segundo, tanto o vasto e peculiar mundo feminino e feminista (Cléo de 5 a 7, 1962; Resposta das Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo, 1975 e Uma Canta, Outra Não, 1977, entre outros), quanto o combate ao racismo e à desigualdade social (Panteras Negras, 1968 e Os Catadores e Eu, 2000).

Por meio de construções fotográficas auspiciosamente elaboradas e com extrema sensibilidade e proximidade aos temas, Varda torna reais e tangíveis tanto as histórias reais quanto as de ficção.

Cada película da cineasta, primeira diretora a receber um Oscar honorário pelo conjunto da obra (2017), é pura poesia imagética que envolve e move profundas emoções em corações e mentes.

Veja algumas de suas principais influências:

Composições fotográficas em vários planos de perspectivas, em “La Pointe Courte”, 1955;
 


Imagens refletidas, em “Cléo de 5 a 7”, 1962;



Sobreposições de rostos em primeiro plano, também em “La Pointe Courte”:



Enquadramentos jornalísticos, em “Daguerreotipos”, 1976;



E uma dica: o bom humor de Agnes, a “vovó punk” (apelido adquirido graças a seus cabelos exóticos) e belíssimos retratos gigantes podem ser apreciados na deliciosa viagem do filme-ensaio “Visages, Villages”, produzido por Agnès e pelo fotógrafo itinerante de mega retratos, JR.